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Anotações Druídicas VI

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Anotações Druídicas VI: Bardos (Parte 1)

Bellou̯esus Īsarnos

Assim como em relação aos druidas, sobrevivem poucos dados sobre a atividade dos bardos no período pré-clássico. Com os trabalhos dos historiadores gregos e romanos, essa situação melhora um pouco e podemos entrever alguma coisa sobre as atividades profissionais dos bardos da Gália antiga.

Ateneu, escrevendo no séc. II a. C., transmitiu um relato extraído da obra (infelizmente) perdida de Posidônio. Com vista a se tornar popular entre os seus súditos, o nobre arverno Lovérnio ofereceu um grande banquete. Naqueles dias, grandes festas eram tão populares quanto hoje ou talvez mais ainda, pois havia menos entretenimento disponível à população e a expectativa de vida era mais curta. Esperava-se que nobres e chefes tribais fossem generosos e com frequência grandes somas eram gastas para ganhar simpatia e apoio. Esses nobres, que tinham acesso a riquezas minerais, como prata ou sal, que controlavam as vias comerciais ou os rios não raro se tornavam extremamente ricos com tais atividades e exigia-se que ostentassem a sua posição gastando tesouros e dando presentes como se o seu valor não tivesse nenhuma importância. Isso era parte da função de cada governante, porém se fazia ainda mais importante quando um nobre desejava assumir uma posição de comando e tentava cativar a opinião pública com o gasto pródigo de grandes tesouros. O festim de Lovérnio parece ter sido uma ocasião dessas.

Para celebrar adequadamente, um recinto quadrangular foi demarcado para a ocasião e podemos imaginar o número dos participantes pelas dimensões do espaço: cerca de 2,5 km em cada lado. Comida e bebida de graça eram oferecidas para manter todos os convidados satisfeitos. Sem dúvida, um grande número de bocas famintas viajou para comparecer à festa. Durante muitos dias, Lovérnio exibiu sua riqueza e generosidade.

Então, no último dia, ele coroou sua exibição fazendo-se conduzir em carruagem pela planície, jogando peças de ouro à multidão de “dezenas de milhares” de gauleses que o seguiam. Foi nesse momento que um poeta apareceu, o primeiro a ser mencionado nos livros de história, mas chegando atrasado ao banquete. Cansado da viagem, o bardo viu Lovérnio passar na sua carruagem esplêndida, cercado por centenas de pessoas que lutavam pelos tesouros arremessados em cima delas. O poeta percebeu e começou a correr atrás da carruagem. Dando cotoveladas em uns e outros, ele se aproximou do veículo. Correndo ao lado dele, possivelmente resfolegando, começou a cantar uma canção de louvor para Louérnio, celebrando sua generosidade incomparável e o seu próprio infortúnio por chegar tão tarde.

Lovérnio, agradado pelos esforços do poeta, jogou-lhe uma bolsa de ouro. Isso imediatamente desatou ainda mais a criatividade do bardo, que, improvisando, declarou que os próprios rastros da carruagem de Louérnio eram uma fonte de ouro e generosidade para a raça humana.

Temos aí o primeiro aparecimento de um bardo na literatura clássica. Como se pode ver, o poeta mostrou o comportamento típico dos bardos que vieram depois dele: sabia como obter lucro, como lisonjear a nobreza e era capaz de improvisar em circunstâncias decididamente difíceis.

Nossa próxima fonte é a “História Gaulesa” de Apiano, que descreveu, no Livro XII, a reunião ocorrida entre um embaixador dos Alóbroges (ou talvez dos Arvernos) e o cônsul Domício, representante do exército romano. O embaixador gaulês obviamente era homem de certa importância e riqueza. Viajou acompanhado de assistentes, servos, cães e até mesmo de um bardo no seu cortejo. Ao encontrar o cônsul Domício, o bardo avançou ousadamente e cantou ao modo gaulês uma canção de louvor comemorando o nobre nascimento do seu grande monarca, Bituito, sua bravura, seu sucesso em batalha e sua riqueza imensa, as grandes virtudes do embaixador e, claro, de si mesmo. Apiano observou que era por causa de elogios desse tipo que todos os embaixadores de distinção viajavam acompanhados de bardos. Embora a presença de um bardo pareça ter sido importante nos encontros políticos dos estadistas gauleses, sua vanglória não impressionou o cônsul romano de jeito nenhum.

Tais relatos mostram uma razoável evidência de que pessoas com funções bárdicas detinham posição vital na diplomacia da Gália antiga do séc. II a. C. Apesar de não ser diplomatas, serviam como apoio ao papel dos diplomatas, forneciam boa reputação à aristocracia e também uma dose de entretenimento. Para as mentes modernas, esse ofício pode parecer um pouco estranho.

Os bardos de épocas antigas, assim como os mais tardios, eram adeptos da arte da vanglória. Esperava-se isso deles, pois um nobre que não fosse elogiado com os termos mais desatinados não seria tido como grande coisa. As pessoas que ouviam as genealogias e os feitos heroicos tais como proclamados pelos bardos geralmente sabiam que as coisas não eram exatamente daquele jeito, mas isso não era razão para diminuir os superlativos. Uma das questões mais cruciais nas culturas célticas era a reputação de que uma pessoa desfrutava.

Se você ler a literatura heroica da Irlanda e de Gales, logo se acostumará a um mundo onde o prestígio era essencial à sobrevivência e a vanglória, uma parte previsível e aceitável das trocas sociais.

Um governante sem louvor ou um guerreiro sem histórias de grandes feitos eram algo impensável. Os relatos mais interessantes não somente eram inventados, mas aparentemente a boa educação exigia que os ouvintes escutassem cada palavra como se estivessem ouvindo um relato comedido e realista. Se você quisesse superar um falastrão, teria que inventar uma história melhor ou contratar um profissional, um bardo, para fazê-lo no seu lugar.

Esse comportamento pode parecer de mau gosto na sociedade moderna, mas possuía uma função muito útil nas sociedades do passado. A cada inverno longo e escuro, os reis e nobres festejavam com os seus guerreiros. Enquanto se embebedavam alegremente com doce hidromel, contavam uns aos outros os seus grandes feitos e os bardos do salão recitavam os louvores celebratórios dos feitos ainda mais impressionantes dos ancestrais. Esperava-se que um bom rei fizesse a guerra ao menos uma vez por ano, invadisse o território de outro regente, saqueasse, atacasse e roubasse o gado. Quando chegava a estação mais quente, votos de aliança eram dados ou quebrados e os nobres guerreiros teriam que provar a validade da sua vanglória em combates verdadeiros.

Naqueles dias, a guerra era uma atividade altamente ritualizada. As tropas de combatententes encontravam-se comumente em espaço aberto. Então, um guerreiro de boa família tomaria a frente, jactando-se de suas proezas de armas e do que pretendia fazer em breve com o inimigo. Dou outro lado, irromperia um heroi com o mesmo ânimo a bradar sua nobre linhagem e intenções sangrentas. Uma palavra puxava outra, insultos seguiam-se e, antes que muito tempo se passasse, ossos estavam se quebrando e pedaços de corpos voando pra cá e pra lá. Na sequência, a próxima dupla de herois tomaria suas posições e repetiria todo o procedimento. Em certos relatos, os nobres falavam por si mesmo, em outros era um bardo profissional ou mesmo o condutor do carro de guerra (também versado na arte do bem falar) que cumpriam essa função.

Ocorreriam então os combates grupais, ou mesmo o raro duelo entre reis ou chefes tribais, porém fica claro que esse tipo de guerra era um processo lento, muito diferente do bellum romanum, empresa coletiva, pois todos queriam ser vistos e admirados individualmente. os guerreiros temiam menos morrer do que acabar com má reputação. A morte, afinal, era algo que a todos ocorreria e deveria ser esperada. Tampouco importava muito morrer, desde que a luta fosse magnífica e os bardos compusessem um bom poema a respeito dela, uma canção de louvor que atravessasse as gerações e inspirasse iguais feitos de bravura nos homens do futuro. Desse modo, a vanglória, fosse autoproclamada ou realizada por um profissional, estabelecia um padrão de comportamento e estimulava guerreiros e soberanos a viver em função da sua reputação pessoal.

A função dos bardos era manter a memória do heroísmo passado viva para as gerações futuras a fim de que semelhantes atos de bravura continuassem a ser um ideal. Quando guerreiros nobres exigiam louvor para sentir-se engrandecidos, o mesmo ocorria de forma mais rigorosa para reis e líderes tribais. Pelo que relataram os autores clássicos, a função dos bardos parece ter sido eminentemente política. Em linguagem moderna, uma comparação possível seriam os especialistas em relações públicas ou portavozes oficiais. Isso, no entanto, não era o todo da sua profissão.

Anotações Druídicas V

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Anotações Druídicas V: Nuvem Mágica

Bellou̯esus Īsarnos

A Nuvem da Testemunha (1)

Sobre ti uma nuvem mágica eu coloco,
[Para guardar-te] de cão, de gato,
De vaca, de cavalo,
De homem, de mulher,
De mancebo, de donzela,
E de criancinha,
Até que novamente eu retorne.
Em nome de Esus, Lugus e Maponos (2).

Comentário:

No livro de que este encantamento foi traduzido e adaptado (William Mackenzie, Gaelic Incantations), essa pequena composição traz o título Fath Fithe, traduzido como “Nuvem Mágica”. Mackenzie explica que o Fath Fithe era um dos encantamentos preferidos dos caçadores na Escócia gaélica, pois permitia tornar objetos físicos invisíveis à visão comum. Assim, os caçadores poderiam voltar da floresta carregados com os despojos da caça, mas invisíveis aos seus inimigos. Acreditava-se que até mesmo contrabandistas poderiam servir-se dele para escapar aos funcionários do Fisco! O autor acrescenta que, na sua época (o livro foi publicado nos últimos anos do séc. XIX), as menções ao Fath Fithe eram já muito raras, embora se pudesse considerar que em tempos mais antigos fosse tido como eficiente encantamento de proteção.

A crença no poder de causar invisibilidade, escuridão ou confusão era muito antiga entre os povos célticos e esse pequeno encantamento escocês possui um precedente inegável na tradição irlandesa, pois foi essa mesma névoa mágica que as Tuatha Dé Danann usaram para esconder Ériu dos Filhos de Mil num manto de brumas, não logrando sucesso porque a magia de Amergin Glúingel, file (poeta sagrado) e breitheamh (especialista em questões legais/árbitro), foi mais potente que a dos druidas das Tuatha Dé. A névoa mágica foi dissipada, os Milesianos desembarcaram, derrotaram os antigos senhores da ilha e ocupam Ériu, a Irlanda, até o dia de hoje.

O velho fath fithe da Escócia é realmente a contraparte do irlandês féth fíada (“névoa da maestria ou conhecimento”) ou ceó druídecta (“bruma druídica”), encantamento ensinado por Manannán Mac Lir às Tuatha Dé Danánn para que se ocultassem dos Filhos de Mil. É o domínio da bruma mágica que torna os deuses materialmente distintos dos humanos, pois permite que os deuses vejam uns aos outros, mas não sejam vistos por olhos mortais (3).

Além da sua função como instrumento mágico de ocultação, o féth fíada pode apresentar ocasionalmente um aspecto sinistro, prenúncio da carnificina, manifestando-se como a “bruma guerreira” de três cores (preta, vermelha e verde), que encontramos no conto Tochmarc Ferbe (“A Corte a Ferbe”):

Luid iarom Conchobar, tri choicait laech impu sin, agus ni ruc nech do Ultaib leis, acht sé féin agus a ara .i. Brod agus Imrind in drúi .i. mac Cathbath. Ni bái dana gilla oc neoch díb acht gilla Conchobair, acht a scéith for a munib leo agus allaigne lethanglassa inallámaib agus a claidib tromma tortbullecha for a cressaib. Ni ba lín tra ba mesta forru, bá mór a toilc menman. O ro siachtatar iarom co m-batar ic fegad in dúnaid úathu innund, atchonncatar tromnél dímór uas chind in dúnaid. Cirdub indara cend dó agus dergg a medon agus glass in cend aile. Iarfaigis Conchobar iarsin: Cid co tirchain a Imrind, ar se, in nél út atchiam uasin dunud. Tirchanaid ém, ar Imrind, ág agus urbaid na haidchi innocht.

E Conchobar partiu, estando com ele três vezes cinquenta guerreiros que cercavam esses chefes, e ele não levou consigo nenhum dos Ultu exceto ele próprio e Brod, o seu auriga, e Imrinn, o Druida, que era o filho de Cathbath. E nenhum desses guerreiros tinha um servo consigo, exceto o servo de Conchobar somente, mas traziam os escudos em suas costas e suas brilhantes lanças verdes em suas mãos, e suas pesadas espadas de potentes golpes em seus cinturões. Contudo, eles não deviam ser desprezados por causa de seu número, grande era o orgulho de suas almas. E quando eles chegaram a esse local de onde a fortalza de Greg podia ser por eles vista, contemplaram uma pesada nuvem que pairava sobre o forte. Uma extremidade da nuvem era negra como carvão e o seu meio era vermelho e a outra ponta era verde. Assim, Conchobar falou a Imrinn, o Druida: “Dize-me, ó Imrinn”, ele falou, “que presságio significa essa nuvem que vemos sobre a fortaleza?” “Verdadeiramente”, disse Imrinn, “isso significa um combate que durará a noite toda e a morte nesta noite” (4).

Não obstante sua indissociável ligação com o contexto pagão, a técnica mágico-druídica do féth fíada não desapareceu com a conversão ao cristianismo ou foi por este rejeitada. Ao contrário, passou a ser usada a serviço da nova fé, como fica demonstrado na Bethu Phátraic (“Vida de Pádraig”):

Nír bu cían iarsin róchoggair in rí leis Pátraic forleith, ocus ised roimraid amarbad, ocus ní forchoemnacair. Forfhoilsig Día do Pátraic inní sin. Adrubairt Láogairi fri Pátraic: “Tair im díaidsi, achleirig, do Temraig corochreitiur duit arbélaibh fer nEirenn”. Ocus rosuidigsom calleic etarnais cechbelaig oFherta Fer Féic co Temraig archiunn Pátraic diamhabad. Acht nírocomarleic Día dó. Dodhechaid Pátraic ochtor macccléirech ocus Benén do gillu léu, ocus rosbendach Pátraic réduidecht. Dodechaid dícheltair tairsiu conárárdraig fer dib. Atchoncatar, immorro, na gentlidi batar isna intledaib ocht naige altaige dotecht secu fón sliab, ocus iarndóe innandegaid ocus gaile for agúalaind: Pátraic aochtar, ocus Benén inandegaidh ocus a fholaire for a muin.

Tunc uir sanctus composuit ilium hymnum patrio idiomato conscriptum, qui uulgo Fáed fíada, et ab aliis Lorica Patricii appellatur. Et in summo abinde inter Hibernos habetur pretio, quia creditur, et multa experientia probatur, pie recitantes ab imminentibus animae et corporis praeseruare periculis.

Não muito tempo depois, o rei chamou Pátraic em particular e cogitou matá-lo e isso não veio a acontecer. Deus manifestou isso a Pátraic. Loegaire disse a Pátraic: “Segue-me, ó clérigo, para Temuir, para que eu creia em ti ante todos os homens de Ériu”. E imediatamente ele preparou uma emboscada desde as Tumbas dos Homens de Fíacc até Temuir, diante de Pátraic, para matá-lo. Deus, porém, não permitiu que isso lhe acontecesse. Patraic chegou com oito de seus jovens clérigos e Benén como um noviço com eles e Patraic abençoou-os antes de partir. Um véu de escuridão desceu sobre eles de forma que nenhum desses homens pôde ser visto. Contudo, os pagãos que estavam escondidos nas redes viram oito gamos passar sob a montanha e atrás deles um jovem cervo com um feixe de galhos em seus ombros: esse era Pátraic com os seus oito e Benén atrás deles com suas tabuletas de escrever nas costas.

Então o homem santo compôs aquele hino em sua língua nativa, que é comumente chamado Feth-fiadha e, por outros, Lorica [“Couraça”] de Pátraic; e desde então foi tido pelos irlandeses na mais alta estima, pois acredita-se – o que está comprovado por muitas experiências – que seja capaz de proteger contra perigos que os ameacem na alma e no corpo (5).

O hino acima aludido é a “Couraça de São Patrício” (Lorica Patricii). Essa venerável oração irlandesa não é outra coisa senão a versão cristã de uma técnica mágica do passado pagão da Irlanda.

Lorica Sancti Patricii

A Couraça de São Patrício

Patraicc dorone in nimmun-sa; i naimseir Loegaire meic Néil dorigned; fád a dénma immorror dia diden co na manchaib ar náimdib in báis robátar i netarnid ar na cleircheib. Ocus is luirech hirse inso fri himdegail cuirp ocus anma ar demnaib ocus dúinib ocus dualchib: cech duine nosgéba chech día co ninnithem léir i nDia, ní thairisfet demna fria gnúis, bid dítin dó ar cech neim ocus format, bid comna dó fri dianbas. bid lu’rech dia anmain iar na étsecht. Patraicc rochan so in tan dorata na hetarnaidi ar a chinn ó Loegaire, na disged do silad chreitme co Temraig, conid annsin atchessa fiad lucht na netarnade comtis aige alta ocus iarróe i na ndíaid .i. Benen; ocus “fáeth fiada” a hainm.

Patraicc fez este hino; na época de Loegaire mac Neill foi feito e a causa da sua composição foi a proteção de si mesmo e dos seus monges contra os inimigos mortais que estavam em emboscada contra os clérigos. E é uma couraça de fé para a proteção do corpo e da alma contra demônios e homens e vícios; quando alguém a recitar diariamente com meditação piedosa sobre Deus, os demônios não ousarão enfrentá-lo, será uma proteção para ele contra todo veneno e inveja, será um guarda para ele contra a morte súbita, será uma couraça para a sua alma depois da sua morte. Patraicc cantou-a quando as emboscadas foram posicionadas contra ele por Loegaire, a fim de que ele não fosse a Temuir para semear a fé, de modo que, naquela ocasião, foram vistos como se fossem cervo selvagens diante daqueles que estavam em emboscada, tendo por trás de si um gamo, isto é, Benen; e Fáeth Fiada é o seu nome.

Atomriug índiu
niurt tríun togairm Tríndóite
cretim treodatad
foísitin oendatad
in dúilemon dáil.

Levanto-me hoje:
vasto poder, invocação da Trindade,
crença na Triplicidade
confissão da Unidade
do Criador da Criação.

Atomriug indiu
niurt gene Chríst co na baithius
niurt crochtho co na adnocul
niurt esséirgi cona fresgabáil
niurt tóniud do brethemnas bratha.

Levanto-me hoje:
o poder do nascimento de Cristo e Seu batismo
o poder de sua crucificação e sepultamento
o poder de sua ressurreição e ascensão
o poder de Sua descida para o Julgamento do Destino.

Atomriug indiu
niurt grád Hiruphin;
i nurlataid aingel
hi frescisin eseirge ar cenn fochraice
i nernaigthib huasalathrach,
i tairchetlaib fatha,
hi praiceptaib apstal,
i nhiresaib fuismedach,
i nendgai nóemingen,
hi ngnímaib fer fírean.

Levanto-me hoje:
poder dos graus dos Querubins
na obediência dos Anjos
no ministério dos Arcanjos
na esperança da ressurreição como recompensa
nas orações dos Patriarcas
nas profecias dos Profetas
nas pregações dos Apóstolos,
na fé dos Confessores
na inocência das Virgens Santas
em ações de homens justos.

Atomriug indiu
niurt nime,
soilse gréne,
etrochta snechtai,
áne thened,
déne lóchet,
luathe gáethe,
fudomna mara,
tairisem talmain,
cobsaidecht ailech.

Levanto-me hoje:
poder do céu
brilho do sol
brancura da neve
esplendor do fogo
velocidade da luz
leveza do vento
profundidade do mar
estabilidade da terra
firmeza do rochedo.

Atomriug indiu
niurt Dé do’m luamaracht,
cumachta Dé do’m chumgabail,
ciall Dé do’mm imthús,
rosc nDé do’m reimcise,
cluas Dé do’m étsecht,
briathar Dé do’m erlabrai,
lám Dé do’m imdegail,
intech Dé do’m remthechtas,
sciath Dé do’m dítin,
sochraite Dé do’mm anucul
ar intledaib demna,
ar aslaigthib dualchae,
ar irnechtaib aicnid,
ar cach nduine mídústhrastar dam
i céin ocus i nocus
i nuathad ocus i sochaide.

Levanto-me hoje:
Poder de Deus para guiar-me
Sabedoria de Deus para minha orientação
Olho de Deus para minha previdência
Ouvido de Deus para minha audição
Palavra de Deus para minha fala
Mão de Deus para minha tutela
Caminho de Deus para o meu trilhar
Escudo de Deus para minha proteção
Amizade de Deus para minha salvação
contra armadilhas de demônios
contra seduções de vícios
contra instigações da natureza
contra toda pessoa que me deseje mal
longe e perto
sozinho e na multidão.

Tocuirius etrum thra na huile nertso,
fri cech nert namnas nétrocar fristí do’m churp ocus do’mm anmain,
fri tairchetla saebḟáthe,
fri dubrechtu gentliuchta,
fri sáibṙechtu heretecda,
fri himcellacht nidlachta,
fri brichta ban ocus goband ocus druad,
fri cech fiss arachuiliu anman duini.

Invoco, portanto, todas essas forças para intervir
entre mim e toda força impiedosa e feroz que possa vir sobre o meu corpo e a minha alma:
contra encantamentos de falsos profetas
contra as leis negras do paganismo
contra as falsas leis da heresia
contra o engano da idolatria
contra feitiços de mulheres e ferreiros e druidas
contra todo conhecimento que seja proibido à alma humana.

Crist do’m imdegail indíu
ar neim, ar loscud,
ar badud, ar guin,
co nomthair ilar fochraice;
Crist lim, Crist rium,
Crist i’m degaid, Crist innium,
Crist íssum, Crist úasum,
Crist dessum, Crist tuathum,
Crist illius, Crist isius, Crist i nérus;
Crist i cridiu cech duine immimrorda,
Crist i ngin cech óen rodomlabrathar
Críst in cech rusc nomdercædar
Críst in cech cluais rodamchloathar.

Cristo para a minha tutela hoje
contra veneno, contra a queima,
contra o afogamento, contra ferimentos,
que possa vir a mim uma multidão de recompensas;
Cristo comigo, Cristo diante de mim
Cristo atrás de mim, Cristo em mim
Cristo sob mim, Cristo sobre mim,
Cristo à minha direita, Cristo à minha esquerda,
Cristo ao deitar, Cristo ao sentar, Cristo ao levantar
Cristo no coração de cada pessoa que pode pensar em mim!
Cristo na boca de todos que possam falar comigo!
Cristo em todos os olhos que possam olhar para mim!
Cristo em todo ouvido que possa me ouvir!

Atomriug indiu
niurt trén togairm trinoit
cretim treodatad
fóisin óendatad
in dúilemain dail.

Levanto-me hoje:
vasto poder, invocação da Trindade,
crença na Triplicidade
confissão da Unidade
do Criador da Criação.

Dominus est salus, domini est salus, Christi est salus;
salus tua, domine, sit semper nobiscum.

O Senhor é a salvação, do Senhor é a salvação, de Cristo é a salvação;
que a tua salvação, ó Senhor, esteja sempre conosco.

Notas

1) Testemunha do conhecimento, conhecedor.

2) Adaptado de Mackenzie, William. Gaelic Incantations: charms and blessings of the Hebrides. Northern Counties Newspaper and Printing and Publishing Company, Limited: Inverness, 1895, p. 49.

3) A bruma mágica não era estranha aos helenos. No Canto XXX da “Ilíada”, é ela o expediente de que se serve Posêidon para ocultar Eneias aos olhos de Aquiles. O Canto V especificamente descreve Atena dando a Diômedes a capacidade de ver os deuses: “E removi o filtro dos teus olhos / que antes os escondia, eis que agora / facilmente distinguirás deuses e homens”. Depois disso, Diômedes feriu Afrodite na mão quando essa deusa tentou resgatar Eneias. O próprio Ares quase morreu aprisionado dentro de um grande vaso, mostrando que os deuses gregos, assim como os hibérnicos, não eram invulneráveis à agressão humana. No relato sobre Jasão e os Argonautas, conta-se que, na busca pelo Velo de Ouro, Hera cobriu os heróis com a mesma névoa mágica a fim de que não percebessem o caminho até chegarem às proximidades do palácio do rei Eetes de Cólquida, pai da feiticeira Medeia.

4) Windisch, Ernst & Stokes, Whitley (ed.). Irische Texte mit Übersetzungen und Wörterbuch in Irische Texte. Leipzig: S. Hirzel, 1897, v.3:2, pp. 475-476.

5) Stokes, Whitley (ed.). The Tripartite Life of Patrick. Londres: Eyre & Spotiswoode, 1887, p. 46 e 48.

Anotações Druídicas IV

04

Anotações Druídicas IV: Direções e Atribuições

Bellou̯esus Īsarnos

Em “A Fundação do Domínio de Temuir” (Suidiugud Tellaich Temra), o ancião Fintan mac Bóchra, o Sábio, tem como missão mostrar que Temuir era e deveria continuar a ser a sede da Realeza Suprema da Irlanda. Ele conta o seguinte:

Uma vez estávamos fazendo uma grande assembleia dos homens da Irlanda ao redor de Conaing Bec-eclach, Rei da Irlanda. Certo dia, então, vimos nessa assembleia um grande herói, belo e poderoso, aproximando-se de nós e vindo do oeste, da direção do pôr-do-sol. Maravilhamo-nos grandemente com a magnitude de sua forma. Tão alto quanto uma árvore era o topo de seus ombros, o céu e o sol visíveis entre suas pernas em razão do seu tamanho e beleza. Um véu de brilhante cristal sobre ele, como uma veste de linho precioso. Sandálias em seus pés e não se sabe de que material eram. Cabelo amarelo-dourado caindo em cachos até a altura de suas coxas. Tábuas de pedra na sua mão esquerda, um ramo com três frutos em sua mão direita e eram estes os frutos que nele estavam, nozes e maçãs e bolotas do mês de maio: e não maduro estava cada fruto. Com passos largos ele caminhou para trás de nós, ao redor da assembleia, com seu ramo dourado de muitas cores de madeira do Líbano atrás de si e um de nós lhe disse: “Vem aqui e conversa com o rei Conaing Bec-eclach”. Ele respondeu e disse: “Que desejais de mim?” “Saber de onde vieste”, disseram eles, “e para onde vais e quais são teu nome e sobrenome.” “Sem dúvida eu vim”, disse ele, “do pôr-do-sol e estou indo para o nascer-do-sol e meu nome é Trefuilngid Tre-eochair”. “Por que te foi dado esse nome?”, disseram eles. “Fácil dizer”, disse ele. “Porque sou eu quem provoca o nascer-do-sol e o seu poente.

Trefuilngid Tre-eochair (“Tríplice Portador da Chave Tripla”), então, é quem provoca a aurora e o poente. Ele fez um pedido: que todos os irlandeses fossem reunidos naquele lugar. Depois que todos estavam presentes, ele perguntou se havia alguém que conhecesse toda a história da ilha. Quando se descobriu que não, ele escolheu um dos presentes para se tornar o depositário desse conhecimento. O escolhido foi Fintan. Fintan depois declarou que Trefuilngid Tre-eochair era “um anjo ou o próprio Deus”.

Um detalhe interessante é que, quando Trefuilngid Tre-eochair pediu que o povo fosse reunido, o rei Conaing Bec-eclach disse que isso poderia ser feito, embora eles não fossem poucos, mas seria difícil para os irlandeses sustentá-lo durante o tempo em que permanecesse com eles. O gigante então declarou que podia se sustentar somente com o aroma do ramo que trazia. Esse ramo merece A nossa atenção. É um ramo dourado, de muitas cores, de madeira do Líbano, com três “frutos” diferentes: nozes, maçãs e bolotas (de carvalho).

Na tradição irlandesa, o ouro não é particularmente significativo, ao contrário da prata, que representa autoridade. A cor dourada indica apenas que o ramo é brilhante e precioso. Já “muitas cores” tem um significado importante: um manto de várias cores representa o próprio druidismo, objetos ou criaturas multicoloridos possuem origem sobrenatural. O ramo é de madeira do Líbano, isto é, cedro. É uma árvore muitas vezes mencionada no Antigo Testamento. Não há cedros na Irlanda, de modo que a referência a essa árvore indica genericamente uma madeira rara e valiosa.

A árvore de que foi retirado esse ramo combina as qualidades de seus frutos. A noz não é necessariamente a proveniente da nogueira, pois, em gaélico medieval, a palavra cno indica ao mesmo tempo a noz e a avelã. Seja como for, essa noz representa sabedoria, poesia, magia, florestas. A maçã é o amor e a felicidade. A bolota é a abundância, enquanto o carvalho indica hospitalidade, tradição e lei. É com o aroma desse ramo que o gigante se alimenta.

A roupa que ele usa é um véu de cristal. Encontramos na lenda céltica barcos de cristal e edifícios de cristal (casas, fortalezas, castelos). Nesse caso, o cristal representa uma técnica e uma perfeição inacessíveis às habilidades humanas, bens que não podem ser comprados por nenhum soberano deste mundo.

Na minha opinião, Trefuilngid Tre-eochair é o deus do tempo gaélico. Além de ser o conhecedor de toda a história, é ele quem regula o curso do sol (aurora e poente). Estou mencionando tudo isso porque é ele próprio quem faz, nesse mesmo conto, as únicas atribuições direcionais seguras existentes na tradição irlandesa (mas as fortalezas e celebrações vêm de Foras Feasa ar Éirinn, “Fundação do Conhecimento sobre a Irlanda” ou simplesmente “História da Irlanda”, de Seathrún Céitinn):

SIAR, oeste (província: Connacht; fortaleza real: Uisnech; Beltaine) – Conhecimento e Magia – Caldeirão do Dagda

Sabedoria, alicerce, ensinamento, pacto, julgamento, crônicas, conselhos, relatos, histórias, ciência, decoro, eloquência, beleza, modéstia, generosidade, abundância, riqueza.

THUAIDH, norte (província: Ulaid, Ulster; fortaleza real: Tailtiu; Lughnasadh) – Batalha e Determinação – Pedra de Fail

Batalhas, disputas, audácia, locais incultos, lutas, arrogância, inutilidade, orgulho, capturas, ataques, severidade, guerras, conflitos.

OITHEAR, leste (província: Laighin, Leinster; fortaleza real: Temuir; festim de Temuir a cada três anos) – Prosperidade e Mudança – Espada de Nuada

Prosperidade, suprimentos, colmeias, torneios, feitos de armas, chefes de família, nobres, prodígios, bom costume, boas maneiras, esplendor, abundância, dignidade, força, riqueza, administração da casa, muitas artes, muitos tesouros, cetim, sarja, seda, trajes, hospitalidade.

DESS, sul (província: Mumhan, Munster; fortaleza real: Tlachtgha; Samhain) – Música e Poesia – Lança de Lugh

Cachoeiras, feiras, nobres, saqueadores, conhecimento, sutileza, ofício dos músicos, melodia, ofício dos menestréis, sabedoria, honra, música, aprendizagem, ensino, ofício dos guerreiros, jogo de fidchell, veemência, ferocidade, arte poética, advocacia, modéstia, código, séquito, fertilidade.

MIDE, centro (província: Mide, Meath)

Realeza Reis, mordomos, dignidade, primazia, estabilidade, instituições, esteios, destruições, ofício de guerreiros, ofício de condutores de carruagens, soldadesca, principados, grandes reis, ofício dos mestres-poetas, hidromel, generosidade, cerveja, renome, grande fama, prosperidade.

Geralmente, encontramos nos livros que a Taça (e, em consequência, o Caldeirão) localiza-se no oeste. Mas esse Caldeirão é o Caldeirão do Dagda, cuja propriedade característica é que ninguém dele se afaste sem estar saciado. É, portanto, um caldeirão nutridor, denotando abundância, fertilidade e comensalidade, isto é, que as pessoas se reúnam ao redor dele para obter alimento. Os textos irlandeses dizem que o poder do Dagda era a capacidade de controlar o clima, influenciando no desenvolvimento das plantações. Tudo isso combina com as atribuições do leste: prosperidade, suprimentos, etc. Mais adiante na lista, encontramos também “boas maneiras”, um imperativo nas refeições feitas em conjunto. Parece bastante adequado que o Caldeirão da Abundância fique no leste, a direção da Prosperidade, não no oeste.

Vamos olhar as atribuições do oeste. “Sabedoria, alicerce, julgamento, eloquência, generosidade, riqueza”: esses são os atributos do REI céltico. Ele precisa ser sábio para fazer sempre o julgamento correto, pois, se ele pronunciar uma sentença injusta, todo o seu reino pagará por isso. Os animais param de se reproduzir, as árvores não produzem mais frutos, as plantações morrem, os peixes desaparecem dos rios e lagos. A injustiça desperta a indignação da Esposa Divina do rei, a Deusa da Soberania (Fláith Érenn, “Soberania da Irlanda”). Além de justo, o rei precisa de riqueza para ser generoso. Quando lhe pedem um dom, ele tem de concordar em concedê-lo de acordo com a categoria do pretendente, sem mesmo perguntar o que este deseja. É o modo de demonstrar um “desapego” heroico aos bens materiais. Desse modo, a lança da realeza fica melhor no oeste que no sul.

A pedra, que “canta” sob cada rei predestinado, deve ser atribuída à música e ao sul, enquanto a espada do guerreiro deve ficar no norte, cuja atribuição principal é “batalha” – parece que a Irlanda do Norte já tinha problemas na época antiga.
Então, combinando as indicações de “A Segunda Batalha de Magh Tuireadh” (que enumera os Quatro Tesouros, as Cidades, os Mestres e os Deuses) e de “A Fundação do Domínio de Temuir” (que dá as atribuições direcionais), é possível fazer as seguintes relações:

SABEDORIA – oeste – terra (talam) – lança (gae) – cidade: Goria (de gor, calor moderado, incubação) – mestre: Esras (“Passagem”) – Soberania sacerdotal e guerreira – Lug

BATALHA – norte – ar (aer) – espada (claideb) – cidade: Findias (de find, branco, brilhante) – mestre: Uscias (“Água Fresca”) – Realeza – Nuada

PROSPERIDADE – leste – água (dobur) – caldeirão (coire) – cidade: Muirias (de muir, mar) – mestre: Semias (“Sutil”) – Abundância, Ressurreição, Regeneração – O Dagda

MÚSICA – sul – fogo (teine) – pedra (lía) – cidade: Falias (de fail, destino; nome simbólico da Irlanda: Inis Fail, Innisfal, “Ilha do Destino”) – mestre: Morfesa (“Grande Ciência”) – Todos os aspectos da Soberania – Bem indivisível de todos os Deuses

REALEZA – centro – éter/névoa (ceó) – Vazio/Plenitude – Expressa a precipitação dos quatro elementos em seu movimento e transformação.

 

Anotações Druídicas III

03

Anotações Druídicas III: Toutouercia Beleni (A Liturgia de Belenos)

Bellou̯esus Īsarnos

1 Rac Uedian Runa
Runa antes da Prece
2 Litus Pempegenii
Ritual do Pentagrama
3 Toutouercia Beleni
A Liturgia de Belenos
3.1 Nigon (Limpeza)
3.2 Uedia (Oração)
3.3 Adberta (Sacrifício)
3.4 Lindon (Libação)
3.2.a Ops Nemesos: Comarcon Sauele
O Olho do Céu: Saudação ao Sol
4 Repita 2 (Litus Pempegenii)

1 Rac Uedian Runa

A runa (segredo) é uma oração curta que prepara o indivíduo para outro rito. Deve ser dita em voz baixa e cadenciada como as ondas do mar, de preferência em local quieto e retirado, em área fechada ou ao ar livre, ou, se possível, às margens do mar ou de um rio.

Lamas mon ouxgabiu Sucelli me deluassetio uo rodarcu,
Lugous me riios urexteio uo rodarcu,
Maponi me glanos urexteio uo rodarcu,
In caranti lubic.
Snus lanobitun in trougi anson rodate:
Eponas sercan,
Brigindonos carantian,
Circii uissun,
Nantosueltas raton,
Nemetonas obnun,
Nodentos suanton
Ad in Bitu Triion urextun
Deuoi Senisteroi samali in Albiie uregont.
In scatu loucetuc papu, papu in diiu noxtic
Snus maronerton anextlon sueson rodate.

Runa antes da Oração

Ergo minhas mãos sob o olhar do Sucellos que me formou
Sob o olhar de Lugus que me fez livre,
Sob o olhar de Maponos que me fez puro, em amizade e alegria.
Dai-me prosperidade em minha necessidade:
O amor de Epona,
A amizade de Brigindu,
A sabedoria de Circios,
A bênção de Nantosuelta.
O temor de Nemetona,
A vontade de Nodens,
Para que no Mundo do Três eu faça como os Deuses e os Ancestrais fazem em Albiios.
Em cada sombra e luz, em cada dia e noite, dai-me o vosso poder e proteção.

2 Litus Pempegenii

Exregontu, exregontu! Adgabiontu, adgabiontu!

Extigariu, a calge/a tute! Biuotus to mi, iacca to mi, sutani biiont molatoues suesron in mon cantlu. Catubodua Agrorigani, Sextansuesores, a Nox, Maguni Pritunixtomagesos, a Nemos ac Talamu!

Tigernos Cagnes are mi,
Tigernos Suissous eron mi,
Tigernos Andedubni dexsiue mon,
Tigernos Aratri toute mon,
Tigernos Nemesos uxi mi,
Talamu Deuia uo mi,
Tigernos Dubron Dubnon tri mi,
Uxmonios Maros Nemesos,
Uotaios Maros Talamonos.

Extigariu, a calge/a tute! Biuotus to mi, iacca to mi, sutani biiont molatoues suesron in mon cantlu.

Ritual do Pentagrama

[Caminha em círculo na direção dos ponteiros do relógio. Agita tuas mãos como se estivesses espantando pássaros.] SAÍ, SAÍ! PARA FORA, PARA FORA! [Também podes usar uma adaga. Repete as frases anteriores até sentires que o espaço está limpo, porém não mais de 7 vezes. Se usaste uma adaga, coloca-a em sua bainha ou no chão, fora do caminho.]

[Com os dedos de tua mão dominante juntos, tocando tua testa entre os olhos, dize:]
EU TE INVOCO [a força vital, nebos, ergue-se do teu coração; desce a tua mão à área genital:], Ó PÊNIS/Ó VULVA [de acordo com o teu gênero; o nebos desce internamente da tua testa através da coluna vertebral e alcança a área genital]! [Toca teu ombro direito:] VIDA PARA MIM [o nebos ergue-se dos genitais de volta ao teu coração e de lá para o teu ombro direito], [toca teu ombro esquerdo:] SAÚDE PARA MIM [o nebos cruza para o teu ombro esquerdo], [entrelaçando tuas mãos na altura do coração, dize:]. QUE VOSSOS LOUVORES ESTEJAM SEMPRE EM MEU CANTAR [imagina um globo de luz radiante com centro no teu coração e preenchendo todo o teu corpo, iluminando o espaço onde estás]. [Avança para o leste ou fica em pé onde estás e imagina um pentagrama em tua testa. Desenha-o ou lança-o para os limites do teu círculo, dizendo:] Ó CATUBODUA, RAINHA DA BATALHA [o nebos flui da tua mão e forma uma estrela diante de ti; ela permanece ali], [volta-te para o norte, em sentido anti-horário, e dize:], Ó SETE IRMÃS [as Plêiades; visualiza a estrela e sente-a como antes], [volta-te para o oeste e dize:], Ó NOITE [visualiza da mesma forma que antes], [de frente para o sul dize:], VIRGEM DO CAMPO DE TRIGO [visualiza da mesma forma que antes], [outra vez de frente para o leste, ergue o braço acima de sua cabeça e desenha o pentagrama ou lança-o para o alto, dizendo:], Ó CÉU [visualiza a estrela num ponto com o dobro de tua altura acima de ti] [olha para baixo de desenha o pentagrama na terra ou lança-o ao chão, dizendo] E TERRA [imagina o pentagrama abaixo de ti numa profundidade com o dobro da tua altura]!

Em pé, com teus braços abertos em forma de cruz, dize:

O SENHOR DA LEI DIANTE DE MIM,
O SENHOR DO CONHECIMENTO ATRÁS DE MIM,
O SENHOR DAS PROFUNDEZAS À MINHA DIREITA,
O SENHOR DO ARADO À MINHA ESQUERDA,
O SENHOR DO CÉU ACIMA DE MIM,
A TERRA DIVINA SOB MIM,
O SENHOR DAS ÁGUAS PROFUNDAS ATRAVÉS DE MIM,
O GRANDE PILAR DO CÉU,
O GRANDE ALICERCE DA TERRA.

Cercado pelas estrelas, agora brilhas com uma luz ponderosa. Linhas de luz provenientes das estrelas convergem no teu coração.

Repete a primeira parte:

EU TE INVOCO, Ó PÊNIS/Ó VULVA! VIDA PARA MIM, SAÚDE PARA MIM, QUE VOSSOS LOUVORES ESTEJAM SEMPRE EM MEU CANTAR.

3 Toutourcia Beleni (A Liturgia de Belenos)

A prece formal (couariuedia) é ritualizada e consiste em quatro partes básicas (petura uidodarna):

3.1 limpeza (nigon)
3.2 oração (uedia)
3.3 sacrifício (adberta)
3.4 libação (lindon)

3.1 Nigon

Nigi tou dui lamai ac eias arduosagietario.

Limpeza

Lava as tuas mãos e ergue-as.

3.2 Uedia

Argisame entar Deuus, Rix andeuoreti, Uatis ac Slani, ad me uerte tou ope. Larogenos immi, birroi senti in bitu mon nerton latiac, extos tou trexia exsanamis diuerbiiet papan meblan. A Belene noibisame, tigerne uerboudice, cleue mon uepus etic erna moi tou raton.

Oração

Ó brilhantíssimo entre os Deuses, Rei que concede grande ajuda, Profeta e Curador, volta para mim os teus olhos. Sou um filho da terra, curtos são meu poder e dias no mundo, mas tua força sem falhas sobrepuja todo mal. Santíssimo Belenos, senhor muito vitorioso, ouve minhas palavras e dá-me a tua benção.

3.2.a Ops Nemesos: Comarcon Sauele

Ops Deui mari,
Ops Deui Clutas,
Ops Rigos Budinas,
Ops Rigos Biuon,
Uer snis exsemaunos
Papa uaxtia ac tratun.
Uer snis exsemaunos
Coimu boudilanuc.
Cluta ti suesin,
A Sauelis clute.
Cluta ti suesin, a Sauelis,
Enepon Deui Biuotutos.

O Olho do Céu: Saudação ao Sol

O olho do grande Deus,
O olho do Deus da glória,
O olho do Rei dos exércitos,
O olho do Rei dos Vivos.
Vertendo sobre nós
A todo momento e estação.
Vertendo sobre nós
gentil e generosamente.
Glória a ti,
Tu, Sol glorioso,
Glória a ti mesmo, ó Sol,
Face do Deus da Vida.

3.3 Adberta

A Belene Agesilobere, sin aretoiberu are tou anextlon. Cardatosagiumi toi raton lauenias ollas uer mon mapus, ciliian, carantas etic mon toutan. Ac suemoi, essi maruon di me consamali mon biuotutan.

Sacrifício

Ó Belenos, Portador de Saúde, ofereço-te isto por causa de tua proteção. Imploro-te que concedas toda felicidade a meus filhos, esposa, amigos e ao meu povo. E para mim mesmo, que eu morra do modo como tenho vivido.

3.4 Lindon

Belene Areopsi,
Belene Argantogaise,
Belene Brani,
Belene Deuocaile,
Belene Drucouerte.

Belene Atir, toi molatus biietu [lindon seme dubri].

Belene Iaccitobere,
Belene Iessine,
Belene Toncetouede,
Belene Touissace,
Belene Uorete.

Belene Atir, toi molatus biietu [lindon seme meles].

Libação

Belenos previdente,
Belenos da lança prateada,
Belenos dos corvos,
Belenos dos presságios divinos,
Belenos afastador do mal.

Pai Belenos, que sejas louvado (verte uma libação de água).

Belenos portador de saúde,
Belenos brilhante,
Belenos guia do destino,
Belenos líder,
Belenos auxiliador.

Pai Belenos, que sejas louvado (verte uma libação de mel).

4 Repete 2 (Litus Pempegenii).

 

Anotações Druídicas II

02

Anotações Druídicas II: um Núcleo Comum da Religião Céltica

Bellou̯esus Īsarnos

Décadas de estudos linguísticos demonstraram que os diferentes idiomas célticos hoje conhecidos recuam a uma só e mesma língua de tronco indo-europeu (dita “proto-céltico” ou “céltico antigo comum”). Essa unidade de origem permite supor o compartilhamento, pelas diversas subdivisões do grupo étnico céltico, de um mínimo de raízes conceituais derivadas da sua herança indo-europeia comum, entre as quais se podem distinguir certas noções religiosas. O exame de cinco fatos linguísticos demonstrará persuasivamente essa afirmação.

1 Todas as línguas célticas servem-se da mesma designação genérica para a divindade: gaulês deuos, irlandês antigo dia, galês antigo duiu, galês duw, córnico antigo duy, bretão doue, que remontam à raiz céltica *dēu̯o– < proto-céltico *deiu̯os, “deus”. Essa terminologia é de origem indo-europeia e o seu uso encontra-se atestado em numerosas sociedades provenientes do mesmo tronco: latim deus, latim antigo deiuos, nórdico antigo tívar (<*deiwos), “deuses”, vêneto deiuos, lituano diẽvas, prussiano deiwas, sânscrito deváḥ etc., todos oriundos do proto-indo-europeu *deiu̯os. Assim, os povos célticos determinavam de forma idêntica a categoria dos interlocutores supra-humanos com os quais a religião deveria fornecer-lhes os meios de comunicar-se, conforme um vocábulo arcaico pertencente à herança linguística e conceitual indo-europeia e que, etimologicamente, designa o ente divino por sua dimensão de “brilhante, luminoso” e, por extensão, “celeste”. A consciência do laço que une o sagrado ao domínio celeste confirma-se pela clara demarcação estabelecida entre a condição dos deuses e a do ser humano, designado pelo termo pancéltico *gdonios (gaulês *gdonios, irlandês antigo duine, galês dyn, córnico antigo den, bretão antigo don, den, bretão den), derivado do nome da terra, *gdū < proto-indo-europeu *dhêghōm, “possuidor de natureza terrestre”. Pode ser ainda percebido no nome nemeton atribuído por gauleses e gálatas ao santuário ou lugar consagrado, talvez formado sobre o nome céltico nemos, que designa o céu (cf. irlandês antigo nem, galês nef, córnico antigo nef, bretão antigo nem).

2 A crença, noção que fundamenta a relação entre os humanos e os deuses e que determina a instituição de comportamentos religiosos apropriados, exprime-se, no conjunto dos idiomas célticos insulares (irlandês antigo cretim, irlandês moderno credim, “eu acredito”, galês antigo credu, bretão krediñ, cornico crysy) por uma terminologia indo-europeia presente igualmente no latim (verbo crēdō, substantivo fidēs < *crēdēs) e nas línguas indo-iranianas (sânscrito, verbo śrad-dhắ e substantivo śraddhā; avéstico, verbo zraz-dā-), originária de um antigo composto verbal cujo protótipo pode ser reconstituído como *kred-dhē-, “colocar o coração”. O significado primordial do termo, que pode ser avaliado graças às acepções idênticas fornecidas pelos contextos religiosos védico e avéstico, não exprime a ideia de um credo teológico propriamente dito, mas remete a uma “manifestação de confiança” pronunciada por um indivíduo humano ante uma deidade, tendo o valor da consagração de uma oferenda. A “confiança” do fiel assemelha-se a uma virtude investida de poder mágico e presumia-se que a sua atribuição a uma divindade seria útil para que esta triunfasse nas suas lutas mitológicas. Esse ato concreto de “fé” comportava sempre a certeza de remuneração para o fiel em troca da parte mágica que o mesmo poderia desempenhar ao reforçar tal ou qual deus cuja causa tivesse escolhido apoiar.

3 Pode-se igualmente destacar o panceltismo das denominações de origem indo-europeia dos componentes da classe sacerdotal, pois vários dos nomes atestados na Gália possuem correspondentes exatos nas línguas insulares goidélicas e britônicas: 1. o bardo, gaulês bardos, “bardo, poeta”, irlandês antigo bard, “bardo, poeta”, rígbard, “bardo real”, galês bardd, “cantor, poeta”, córnico antigo barth, “mimo, bufão”, bretão medieval barzh, “menestrel”; 2. o vate, gaulês uatis, “adivinho”, irlandês antigo fáith, “vidente, profeta, adivinho”, galês gwawd, “canção, poema, sátira”; 3. o druida, gaulês *druis, irlandês antigo druí, “mago, bruxo”; em galês medieval, sobreviveu somente no nome da carriça (Troglodytes troglodytes), dryw, “ave-druida”, permitindo supor certa unidade na organização do corpo sacerdotal, que possuía o domínio completo das atividades religiosas, quer se tratasse da elaboração e transmissão do saber teológico, da regulamentação e da execução do conjunto dos ofícios cultuais privados e públicos e dos ritos divinatórios, além de outras prerrogativas ligadas à justiça e à educação da juventude (“uma grande quantidade de rapazes vem aos druidas para instrução, tendo-os em grande respeito”, César, Comentários, VI, 13; “os druidas também estudam os caminhos da natureza, mas aplicam-se às leis da moralidade sobretudo. Os gauleses consideram os druidas as mais justas das pessoas e, portanto, são confiados a eles os julgamentos das disputas públicas e privadas”, Estrabão, Geografia, IV, 4, 4-5). Outro indicativo dessa unidade seria a cor branca das vestimentas do pessoal sacerdotal céltico tanto na Gália, quanto na Irlanda.

4 O vocabulário litúrgico céltico especializado em relação ao sacrifício, instituição central de toda religião, não chegou até nós, à exceção de um único termo relativo à oferenda sacrificial ou oblação. Não o conhecemos senão por meio das línguas insulares, pelas quais é compartilhado (irlandês antigo edbart/idbart, galês antigo aperth, galês médio aberth, “sacrifício” < proto-céltico *ad-ber-tā). Etimologicamente, pode ser entendido como “o que se traz” (a uma divindade), sentido conservado na semântica medieval, pois era usado como tradução do latim offerenda em referência à Eucaristia cristã.

5 Relativamente ao calendário religioso, embora os conhecimentos atuais sejam tristemente incompletos, sabe-se ao menos que os gaélicos da Irlanda e os gauleses possuíam certas celebrações em comum. É discutida a equivalência entre o Samuin irlandês e o Samon(ios) gaulês; talvez a festa da soberania em primeiro de agosto (Lugnasad em irlandês, “assembleia de Lug”) corresponda a uma possível celebração gaulesa que foi substituída pelo concilium Galliarum instituído por Roma em 12 aEC na capital de todas as Gálias, Lugdunum. Irlandeses e gauleses recorriam ambos a uma mesma terminologia indo-europeia, atestada igualmente em bretão e galês, para designar os tempos propícios dos seus calendários: na Gália, pode-se observar no calendário de Coligny que os meses de 30 dias (excetuando-se Equos) surgem acompanhados da notação mat(u-), “favorável, bom”, ao passo que os meses de 29 dias são nomeados anm(atu-), “desfavoráveis”; na Irlanda, maith < *mati- aplicava-se ao dia propício (Lebor na hUidre, fol. 61a, l. 5038: Iarfacht dia aiti, cia so sén & solud búi for in ló i m-bátar, in ba maith fá in ba saich, “um deles perguntou ao seu professor, que fortuna e presságio poderia haver para o dia em que estavam, se ele era propício ou nefasto”; Táin Bó Cúailgne, 7b). Assim, pode-se considerar que esse termo possuísse, na origem, um significativo valor religioso.

A julgar pelas correspondências dos respectivos vocabulários, os celtas continentais e insulares aparentavam possuir, em matéria de religião, uma base conceitual comum cujas chaves interpretativas encontram-se no fundo cultural religioso herdado dos indo-europeus.

Referências

Benveniste, Émile. Le Vocabulaire de Instituitions Indo-Européenes. Paris: Les Éditions de Minuit, 1969.
Delamarre, Xavier. Dictionaire de la Langue Gauloise. Paris: Errance, 2003.
Dumézil, Georges. La Religion Romaine Archaïque. Paris: Payot, 1974.
Le Roux, Françoise & Guyonvarc’h, Christian-Joseph. Les Druides. Rennes: Ouest-France, 1986.
Matasović, Ranko. Etymological Dictionary of Proto-Celtic. Leiden: Brill, 2009.
Windisch, Ernst. Die Altirische Heldensage Táin Bó Cúailgne. Leipzig: Verlag von S. Hirzel, 1905.

 

Anotações Druídicas I

01

Anotações Druídicas I: a posição social dos druidas comparada à dos ἱερῆες homéricos ou onde estão os bardos e vates?

Bellou̯esus Īsarnos

Existia, no mundo céltico e no mundo homérico, uma espécie de “burguesia”, uma categoria de homens que ocupavam um lugar intermediário entre os proprietários ricos – na Gália, os cavaleiros, *epates (latim equites) – e os proletários, simples trabalhadores. Essa burguesia compreendia os adivinhos, μάντεις, mánteis (gaulês *u̯ātīs, *u̯elētes), os ἀοιδόι, aóidoi, ou bardos (*bardoi), os médicos, os operários cujo ofício exigisse um aprendizado, tais como os carpinteiros, os ferreiros, os esmaltadores. Na Irlanda e na Gália, incluía-se nessa burguesia o soldado profissional, que era desconhecido de Homero; entretanto, o comerciante não integrava a burguesia nem na Gália independente nem na Irlanda épica nem entre os helenos da “Ilíada” e da “Odisseia”.
O druida, proveniente da Grã-Bretanha em época mais recente (dando-se crédito a César [1]), não se posicionou nessa burguesia; elevou-se acima dela e, novamente segundo o general romano, atingiu quase o mesmo nível dos cavaleiros. A informação trazida por César está de acordo com a literatura épica da Irlanda.

Os druidas eram homens de posição muito superior à dos sacerdotes, ἱερῆες (hierēes), da “Ilíada”. Estes formavam um grupo à parte, distinto simultaneamente da burguesia e da aristocracia, porém sem grande influência; encontramos o equivalente na Gália Cisalpina no relato sobre o ano 216 aEC, na menção aos templi antistites que, entre os boios, bebiam no cálice feito do crânio do cônsul romano Lucius Posthumius (2); eram simplesmente os ministros de um templo, como o ἱερεύς (hieréus) homérico.

Abaixo dos druidas, os u̯ātīs e os bardoi ocupavam lugar análogo ao dos adivinhos, μάντεις, mánteis e ἀοιδόι, aoidói, na literatura homérica, onde a posição dos μάντεις era intermediária entre a aristocracia e a plebe, isto é, entre os ἄριστοι, áristoi, e os homens do povo, δῆμος, dēmos. Em Homero, formavam duas classes do importante grupo dos operários possuidores de um ofício que necessitasse de longo aprendizado e que, não possuindo fortuna própria, viviam de oferecer os seus serviços ao público, δημιοεργοί, dēmioergói. Tais operários, nos poemas homéricos, dividiam-se em cinco classes: 1a., os adivinhos; 2a. os homens que trabalham a madeira, os metais, a pedra, τέκτονες, téktones; 3a. os médicos; 4a. os aedos e 5a. os arautos (3).

César lançou na plebe gaulesa todo esse grupo de profissionais; não lhe era possível integrá-los às duas classes superiores: 1a. cavaleiros, equites; 2a. sacerdotes ou druidas, que, passado o período romano, reaparecem ambas na Idade Média (como nobreza guerreira e “príncipes” da Igreja Católica). César não concebia uma categoria intermediária entre a plebe e essa aristocracia meio militar, meio religiosa. Sendo ele próprio membro da aristocracia romana e pontífice, podia entender a posição do cavaleiro e do druida gauleses; para a “burguesia” gaulesa, entretanto, não tinha senão desprezo.

Há uma passagem de um dos livros perdidos de Posidônio de Apameia (c. 135 aEC – c. 51 EC) que justifica, de certo modo, a atitude de César ao menos em relação aos bardos: Louernius, pai do rei Bituitus, ofereceu ouro e um banquete público que durou vários dias a fim de ganhar o favor do povo. Certo bardo, chegando tarde para aproveitar a generosidade de Louernius, cantou um poema em que louvava a grandeza deste e se lamentava por seu atraso. Encantado, enquanto partia em sua carruagem, Louernius jogou ao bardo uma bolsa cheia de ouro. O poeta seguiu correndo ao lado do veículo a entoar louvores às marcas deixadas pelas rodas que “traziam áureos benefícios aos homens” (4).

Mais tarde, Bituitus, então rei dos alóbroges, enviou uma embaixada aos salúvios . Um bardo fazia parte do cortejo que acompanhou o embaixador, tendo como função cantar louvores ao rei Bituitus, aos alóbroges e ao embaixador, cujo nobre nascimento, bravura e riqueza elogiava ao acompanhamento da lira (6). Posidônio também descreveu os bardos como “companheiros de mesa e parasitas (isto é, aduladores) dos reis” (7). Assim, é compreensível que um “grande senhor” como César tenha relegado os bardos à plebe comum e não se tenha dignado a falar deles.

A respeito dos adivinhos, silêncio. Ficamos reduzidos às informações que nos foram prestadas pelos autores gregos, isto é, Diodoro Sículo, Timagenes e Estrabão. De acordo com Diodoro, todo o povo obedecia aos adivinhos (8). Para Estrabão, todas as tribos gaulesas reconheciam a honravam excepcionalmente três grupos de homens: os bardos, os vates e os druidas. Os bardos, cantores de hinos e poetas; os vates, que fazem sacrifícios e interpretam a natureza para adivinhar o futuro, e os druidas, que se ocupam da interpretação da natureza com idêntica finalidade e também com a filosofia moral (9). Dessa filosofia moral pouco se sabe. Diógenes Laércio, contudo, preservou um dos aforismos druídicos: “Quanto aos Gimnosofistas e aos Druidas, dizem-nos que comunicam sua filosofia por meio de enigmas, exortando os homens a reverenciar os deuses, abster-se de fazer o mal e praticar a bravura” (10). Os druidas, graças a sua reputação de “os mais justos dos homens” (Estrabão), chegaram a inspirar nas tribos uma tal confiança na equidade dos seus pareceres que o julgamento de todos os processos públicos e privados, sobretudo os casos de homicídio, era frequentemente entregue ao seu julgamento.

Se o testemunho de César fosse aceito literalmente, os druidas teriam julgado todos os processos (11). Existe nesse ponto, contudo, um exagero que fica evidente à simples leitura dos “Comentários”. Certas disputas entre os gauleses mencionadas em “Sobre a Guerra da Gália” não são julgadas pelos druidas, mas pelas assembleias tribais ou por magistrados eleitos. A verdade a esse respeito encontra-se em Diodoro, que reproduz com mais fidelidade o texto de Posidônio: “Tampouco é somente nas necessidades da paz, mas também em suas guerras, que obedecem, acima de todos os outros, a esses homens [os druidas] e a seus poetas cantores [os bardos] e tal obediência é observada não somente por seus amigos, mas também por seus inimigos; frequentemente, por exemplo, quando dois exércitos aproximam-se um do outro com espadas desembainhadas e lanças projetadas para frente, esses homens posicionam-se entre eles e obrigam-nos a parar, como se tivessem lançado um encantamento sobre animais selvagens. Desse modo, mesmo entre os mais ferozes bárbaros, o furor dá lugar à sabedoria e Ares é sobrepujado pelas Musas” (12). Observe-se a presença do advérbio “frequentemente” (πολλάκις, pollákis, no original) indicando que a arbitragem druídica não se dava em todos os casos, mas de forma recorrente. Desse modo, percebemos que os druidas gauleses possuíam uma grande influência política, embora não fossem homens de guerra, como os cavaleiros. Essa é a principal causa para a proeminência que César lhes atribuiu no Livro VI dos “Comentários”, totalmente desconsiderando bardos e vates.

Outrossim, já vimos que havia certa sobreposição entre as funções dos vates e as dos druidas. Na verdade, a ascendência moral dos druidas tornou-os indispensáveis à comunicação com os deuses por meio dos ritos sacrificiais, como ensinou Diodoro (13). A influência política e o poder religioso dos druidas permitiram a César (e a seus leitores) equipará-los aos pontífices, funcionários da mais alta importância para o estado romano e entre os quais o próprio César tinha lugar (14). É compreensível que tenham chamado especialmente a atenção do general romano.

Havia na Gália uma regra que teria contribuído muito para dar aos druidas a influência poderosa de que desfrutavam em detrimento dos u̯ātīs ou u̯elētes. Admitiu-se o princípio de que era impossível a realização de um sacrifício sem o concurso dos druidas. Essa parece ter sido uma lei absoluta, ainda que César nos fale somente da parte que ligava os druidas aos sacrifícios humanos (15). A consequência dessa lei era a impossibilidade, para os u̯ātīs, de proceder à divinação pelo sacrifício sem a cooperação dos druidas, o que os colocaria em posição de dependência destes quando se recorresse ao modo de divinação que parece ter sido o mais importante na Gália, a divinação pelo sacrifício humano. Eis, novamente, a razão pela qual César considerou os adivinhos gauleses como algo sem importância e deles não se ocupou.

A necessidade da intervenção dos druidas para a validade dos sacrifícios parece indicar que eram sobretudo sacerdotes. Apesar disso, seria grave equívoco igualar o druida gaulês ao ἱερεύς homérico.

O ἱερεύς homérico adivinha o futuro como o μάντις. Visto desse modo, assemelha-se ao druida, que adivinha o futuro como o u̯elēđ. Mas o ἱερεύς não está associado a uma corporação, como estavam os druidas. Ele liga-se a um templo, consagrado a uma divindade especial, e o ἱερεύς tem por única função o cuidado desse templo e o culto que nele recebe o deus. Assim aparece no Canto I da “Ilíada” o sacerdote de Apolo, Crises, cuja filha Agamênon captura e que vem a ser restituída graças à proteção do deus de que o sacerdote é servidor. No Canto V do mesmo poema, surge Dares, sacerdote de Hefesto, que tem dois filhos. Um destes é morto pelo heroi grego Diômedes; o outro escapa, evitando, pela proteção de Hefesto, a morte que Diômedes lhe daria. Hefesto desejava poupar ao velho pai o pesar doloroso que lhe causaria a perda dos dois filhos.

Na Grécia homérica, os ἱερῆες podiam auferir vantagens econômicas do seu ofício (16), o mesmo aplicando-se aos druidas da Gália, que, para começar, estavam isentos do serviço militar e do pagamento de quaisquer obrigações tributárias (17). Todavia, o ἱερεύς não ocupava a mesma posição de importância que o druida. A sua intervenção não era necessária à regularidade dos sacrifícios. Nenhum sacerdote intervém nos sacrifícios oferecidos pelos gregos. O exército grego não contava com capelães. É o rei supremo, Agamênon, que, antes da primeira batalha, oferece em sacrifício ao todo-poderoso filho de Cronos um boi gordo de cinco anos; é ele que, acompanhado de outros sete reis, dirige uma prece solene em nome das tropas ao grande Zeus. Nessa época, cada guerreiro em particular fazia, por seu interesse pessoal, um sacrifício ao deus pelo qual tivesse especial devoção. Quando se celebrou entre troianos e gregos um tratado que previa a solução do conflito entre as duas nações a um combate singular entre Páris e Menelau, foi mais uma vez Agamênon que, cercado por outros reis, invocou Zeus e cortou as gargantas dos cordeiros sacrificiais.

Da mesma forma, em Roma, sob a realeza, o soberano era o primeiro-ministro da religião e, ao mesmo tempo, o primeiro magistrado do estado. Ainda depois da queda da monarquia, o respeito ao rito primitivo conservou o título de rex sacrorum ou rex sacrificiorum (“rei dos sacrifícios”).

Vemos assim que, entre os gregos homéricos bem como entre os romanos do período mais antigo, a autoridade política do soberano misturava-se à autoridade religiosa. Para os gregos, à figura e atuação do ofício sacerdotal exclusivo faltava o peso da força política, ao passo que, para os gauleses, com a autoridade política e religiosa separadas, o ato sacrificial não poderia ser realizado senão pelo u̯ātīs com a participação do druida, ficando vedada a sua prática válida pelo magistrado supremo, fosse este hereditário ou eleito.

Cabia ao druida decidir quem poderia se comunicar com os deuses, sendo essa uma das principais fontes do seu poder.

Notas

1) Caio Júlio César (100 aEC – 44 aEC), Commentarii de Bello Gallico, VI, 13.

2) Tito Lívio (c. 59 aEC — 17 EC), Ab Vrbe Condita Libri, XXIII, 24: Ibi Postumius omni ui ne caperetur dimicans occubuit. Spolia corporis caputque praecisum ducis Boii ouantes templo quod sanctissimum est apud eos intulere. Purgato inde capite, ut mos iis est, caluam auro caelauere, idque sacrum uas iis erat quo sollemnibus libarent poculumque idem sacerdoti esset ac templi antistitibus (ali Posthumius caiu, lutando com toda a sua força para não ser capturado. Os boios cortaram a sua cabeça, e carregaram-na e aos espólios que roubaram de seu corpo em triunfo ao mais sagrado templo que possuíam. Depois disso, limparam a cabeça de acordo com seu costume e, tendo coberto o crânio com ouro batido, usaram-no como cálice para libações em seus festivais solenes e taça de beber para seus altos sacerdotes e outros ministros do templo).

3) Homero, Odisseia, XVII, 383-385: […] ἄλλον γ᾽, εἰ μὴ τῶν οἳ δημιοεργοὶ ἔασι, / μάντιν ἢ ἰητῆρα κακῶν ἢ τέκτονα δούρων, / ἢ καὶ θέσπιν ἀοιδόν, ὅ κεν τέρπῃσιν ἀείδων; ([…] a menos que seja um daqueles que são mestres de algum ofício público, / um profeta, ou um curador de enfermidades, ou um construtor, / sim, ou um sublime intérprete, que oferece deleite com o seu cantar?).

4) Citado por Ateneu de Náucratis, Deipnosophistaí, L. IV, 152e.

5) No ano 121 aEC.

6) Apiano de Alexandria (c. 95 – c. 165 EC), Fragmenta de Rebus Gallicis, XII.

7) Diodoro Sículo (séc. I a EC), Bibliotheca Historica, V, 31: Os gauleses fazem, do mesmo modo, uso de adivinhos, considerando-os merecedores do maior acatamento e esses homens predizem o futuro por meio do voo ou dos gritos das aves e da matança de animais sagrados e todos lhes são subservientes.

8) Estrabão (64/63 aEC – 24 EC), Geōgraphiká, L. IV, Cap. 4, §4: Entre todos os povos gauleses, sem exceção, encontram-se três grupos que são objeto de honras extraordinárias, a saber, os Bardos, os Vates e os Druidas, ou seja, Bardos, os cantores sagrados e poetas; Vates, os que se ocupam das coisas do culto e estudam a natureza; Druidas, que, além do estudo da natureza, ocupam-se também da filosofia ética. Estes últimos são considerados os mais justos dos homens e, por essa razão, confia-se-lhes a decisão de todas as dissensões, sejam públicas ou privadas; antigamente, até mesmo as questões de guerra eram submetidas a seu exame e algumas vezes foram vistos a impedir as legiões inimigas já a ponto de sacar as armas.

9) Diógenes Laércio (séc. III d. C.), Bioi kai gnomais ton en philosophian eudokimesanton, I, 6.

10) César, Commentarii de Bello Gallico, VI, 13: Sem dúvida, os Druidas são os juízes em todas as controvérsias públicas e privadas. Se qualquer crime foi cometido, se qualquer homicídio foi feito, se há quaisquer questões relativas a herança, ou qualquer controvérsia a respeito de limites, os Druidas decidem o caso e determinam as punições.

11) César, Commentarii de Bello Gallico, VI, 13: Sem dúvida, os Druidas são os juízes em todas as controvérsias públicas e privadas. Se qualquer crime foi cometido, se qualquer homicídio foi feito, se há quaisquer questões relativas a herança, ou qualquer controvérsia a respeito de limites, os Druidas decidem o caso e determinam as punições.

12) Diodoro Sículo, Bibliotheca Historica, V, 31.

13) Diodoro Sículo, Bibliotheca Historica, V, 31: […] e é um costume deles que ninguém realize um sacrifício sem um “filósofo” [isto é, um druida], pois ações de graças devem ser oferecidas aos deuses, dizem, pelas mãos de homens que sejam experientes na natureza do divino e que falam, por assim dizer, a língua dos deuses e é pela intermediação de tais homens que, pensam eles, do mesmo modo as bençãos devem ser buscadas […]

14) César deteve a posição de Pontífice Máximo de Roma de 63 aEC até a sua morte, 19 anos mais tarde.

15) César, Commentarii de Bello Gallico, VI, 16: Todos os gauleses são muito devotados à religião e, por causa disso, aqueles que são afligidos com alguma doença terrível ou enfrentam perigos na batalha realizarão sacrifícios humanos ou, ao menos, prometerão fazê-lo. Os Druidas são os ministros em tais ocasiões. Eles acreditam que, a menos que a vida de um homem seja oferecida pela vida de outro, a dignidade dos deuses imortais será insultada. Isso é verdade para os sacrifícios públicos e para os privados. Alguns construirão enormes figuras que enchem com pessoas vivas e então lhes põem fogo, perecendo todos nas chamas. Acreditam que a execução de ladrões e de outros criminosos é a mais agradável aos deuses, mas, quando for reduzido o número de pessoas culpadas, eles matarão também os inocentes.

16) V. Odisseia, IX, 193-205; 346-396, onde se mencionam as riquezas de Marão, sacerdote de Apolo.

17) César, Comentarii de Bello Gallico, VI, 14.