Anotações Druídicas VI: Bardos (Parte 1)
Bellou̯esus Īsarnos
Assim como em relação aos druidas, sobrevivem poucos dados sobre a atividade dos bardos no período pré-clássico. Com os trabalhos dos historiadores gregos e romanos, essa situação melhora um pouco e podemos entrever alguma coisa sobre as atividades profissionais dos bardos da Gália antiga.
Ateneu, escrevendo no séc. II a. C., transmitiu um relato extraído da obra (infelizmente) perdida de Posidônio. Com vista a se tornar popular entre os seus súditos, o nobre arverno Lovérnio ofereceu um grande banquete. Naqueles dias, grandes festas eram tão populares quanto hoje ou talvez mais ainda, pois havia menos entretenimento disponível à população e a expectativa de vida era mais curta. Esperava-se que nobres e chefes tribais fossem generosos e com frequência grandes somas eram gastas para ganhar simpatia e apoio. Esses nobres, que tinham acesso a riquezas minerais, como prata ou sal, que controlavam as vias comerciais ou os rios não raro se tornavam extremamente ricos com tais atividades e exigia-se que ostentassem a sua posição gastando tesouros e dando presentes como se o seu valor não tivesse nenhuma importância. Isso era parte da função de cada governante, porém se fazia ainda mais importante quando um nobre desejava assumir uma posição de comando e tentava cativar a opinião pública com o gasto pródigo de grandes tesouros. O festim de Lovérnio parece ter sido uma ocasião dessas.
Para celebrar adequadamente, um recinto quadrangular foi demarcado para a ocasião e podemos imaginar o número dos participantes pelas dimensões do espaço: cerca de 2,5 km em cada lado. Comida e bebida de graça eram oferecidas para manter todos os convidados satisfeitos. Sem dúvida, um grande número de bocas famintas viajou para comparecer à festa. Durante muitos dias, Lovérnio exibiu sua riqueza e generosidade.
Então, no último dia, ele coroou sua exibição fazendo-se conduzir em carruagem pela planície, jogando peças de ouro à multidão de “dezenas de milhares” de gauleses que o seguiam. Foi nesse momento que um poeta apareceu, o primeiro a ser mencionado nos livros de história, mas chegando atrasado ao banquete. Cansado da viagem, o bardo viu Lovérnio passar na sua carruagem esplêndida, cercado por centenas de pessoas que lutavam pelos tesouros arremessados em cima delas. O poeta percebeu e começou a correr atrás da carruagem. Dando cotoveladas em uns e outros, ele se aproximou do veículo. Correndo ao lado dele, possivelmente resfolegando, começou a cantar uma canção de louvor para Louérnio, celebrando sua generosidade incomparável e o seu próprio infortúnio por chegar tão tarde.
Lovérnio, agradado pelos esforços do poeta, jogou-lhe uma bolsa de ouro. Isso imediatamente desatou ainda mais a criatividade do bardo, que, improvisando, declarou que os próprios rastros da carruagem de Louérnio eram uma fonte de ouro e generosidade para a raça humana.
Temos aí o primeiro aparecimento de um bardo na literatura clássica. Como se pode ver, o poeta mostrou o comportamento típico dos bardos que vieram depois dele: sabia como obter lucro, como lisonjear a nobreza e era capaz de improvisar em circunstâncias decididamente difíceis.
Nossa próxima fonte é a “História Gaulesa” de Apiano, que descreveu, no Livro XII, a reunião ocorrida entre um embaixador dos Alóbroges (ou talvez dos Arvernos) e o cônsul Domício, representante do exército romano. O embaixador gaulês obviamente era homem de certa importância e riqueza. Viajou acompanhado de assistentes, servos, cães e até mesmo de um bardo no seu cortejo. Ao encontrar o cônsul Domício, o bardo avançou ousadamente e cantou ao modo gaulês uma canção de louvor comemorando o nobre nascimento do seu grande monarca, Bituito, sua bravura, seu sucesso em batalha e sua riqueza imensa, as grandes virtudes do embaixador e, claro, de si mesmo. Apiano observou que era por causa de elogios desse tipo que todos os embaixadores de distinção viajavam acompanhados de bardos. Embora a presença de um bardo pareça ter sido importante nos encontros políticos dos estadistas gauleses, sua vanglória não impressionou o cônsul romano de jeito nenhum.
Tais relatos mostram uma razoável evidência de que pessoas com funções bárdicas detinham posição vital na diplomacia da Gália antiga do séc. II a. C. Apesar de não ser diplomatas, serviam como apoio ao papel dos diplomatas, forneciam boa reputação à aristocracia e também uma dose de entretenimento. Para as mentes modernas, esse ofício pode parecer um pouco estranho.
Os bardos de épocas antigas, assim como os mais tardios, eram adeptos da arte da vanglória. Esperava-se isso deles, pois um nobre que não fosse elogiado com os termos mais desatinados não seria tido como grande coisa. As pessoas que ouviam as genealogias e os feitos heroicos tais como proclamados pelos bardos geralmente sabiam que as coisas não eram exatamente daquele jeito, mas isso não era razão para diminuir os superlativos. Uma das questões mais cruciais nas culturas célticas era a reputação de que uma pessoa desfrutava.
Se você ler a literatura heroica da Irlanda e de Gales, logo se acostumará a um mundo onde o prestígio era essencial à sobrevivência e a vanglória, uma parte previsível e aceitável das trocas sociais.
Um governante sem louvor ou um guerreiro sem histórias de grandes feitos eram algo impensável. Os relatos mais interessantes não somente eram inventados, mas aparentemente a boa educação exigia que os ouvintes escutassem cada palavra como se estivessem ouvindo um relato comedido e realista. Se você quisesse superar um falastrão, teria que inventar uma história melhor ou contratar um profissional, um bardo, para fazê-lo no seu lugar.
Esse comportamento pode parecer de mau gosto na sociedade moderna, mas possuía uma função muito útil nas sociedades do passado. A cada inverno longo e escuro, os reis e nobres festejavam com os seus guerreiros. Enquanto se embebedavam alegremente com doce hidromel, contavam uns aos outros os seus grandes feitos e os bardos do salão recitavam os louvores celebratórios dos feitos ainda mais impressionantes dos ancestrais. Esperava-se que um bom rei fizesse a guerra ao menos uma vez por ano, invadisse o território de outro regente, saqueasse, atacasse e roubasse o gado. Quando chegava a estação mais quente, votos de aliança eram dados ou quebrados e os nobres guerreiros teriam que provar a validade da sua vanglória em combates verdadeiros.
Naqueles dias, a guerra era uma atividade altamente ritualizada. As tropas de combatententes encontravam-se comumente em espaço aberto. Então, um guerreiro de boa família tomaria a frente, jactando-se de suas proezas de armas e do que pretendia fazer em breve com o inimigo. Dou outro lado, irromperia um heroi com o mesmo ânimo a bradar sua nobre linhagem e intenções sangrentas. Uma palavra puxava outra, insultos seguiam-se e, antes que muito tempo se passasse, ossos estavam se quebrando e pedaços de corpos voando pra cá e pra lá. Na sequência, a próxima dupla de herois tomaria suas posições e repetiria todo o procedimento. Em certos relatos, os nobres falavam por si mesmo, em outros era um bardo profissional ou mesmo o condutor do carro de guerra (também versado na arte do bem falar) que cumpriam essa função.
Ocorreriam então os combates grupais, ou mesmo o raro duelo entre reis ou chefes tribais, porém fica claro que esse tipo de guerra era um processo lento, muito diferente do bellum romanum, empresa coletiva, pois todos queriam ser vistos e admirados individualmente. os guerreiros temiam menos morrer do que acabar com má reputação. A morte, afinal, era algo que a todos ocorreria e deveria ser esperada. Tampouco importava muito morrer, desde que a luta fosse magnífica e os bardos compusessem um bom poema a respeito dela, uma canção de louvor que atravessasse as gerações e inspirasse iguais feitos de bravura nos homens do futuro. Desse modo, a vanglória, fosse autoproclamada ou realizada por um profissional, estabelecia um padrão de comportamento e estimulava guerreiros e soberanos a viver em função da sua reputação pessoal.
A função dos bardos era manter a memória do heroísmo passado viva para as gerações futuras a fim de que semelhantes atos de bravura continuassem a ser um ideal. Quando guerreiros nobres exigiam louvor para sentir-se engrandecidos, o mesmo ocorria de forma mais rigorosa para reis e líderes tribais. Pelo que relataram os autores clássicos, a função dos bardos parece ter sido eminentemente política. Em linguagem moderna, uma comparação possível seriam os especialistas em relações públicas ou portavozes oficiais. Isso, no entanto, não era o todo da sua profissão.